Nossa espécie, Homo sapiens, surgiu na África há cerca de 200 mil anos. Assume-se que os primeiros integrantes da espécie tinham a pele escura, já que a alta concentração do pigmento melanina nas células — de onde deriva a tonalidade mais escura — seria vantajosa por dar aos seus portadores uma proteção contra a forte radiação solar nas proximidades da linha do Equador. Então, por que alguns humanos têm a pele mais clara do que outros?
Em geral, os pesquisadores aceitam que dezenas de milhares de anos se passaram até que a mudança atingisse os padrões que vemos hoje, mas uma nova análise de DNA antigo concluiu que a cor de pele europeia continuou a mudar nos últimos 5.000 anos, indicando que outros fatores, como a dieta e a atração sexual, podem ter influenciado.
Pressão ou acaso?
Níveis mais elevados da melanina, proteína que bloqueia a ação dos raios ultravioleta, protegem-nos de danos sobre o DNA que podem provocar o câncer (cancro) de pele. No entanto, as células da pele precisam ser expostas a uma determinada quantidade de luz ultravioleta para que produza a vitamina D. Combinados, estes dois fatores exercem uma pressão que poderia explicar o porquê de a pele ter ficado mais clara conforme as pessoas se afastaram do Equador.
Todavia, estudos recentes têm mostrado que outros fatores possam estar em jogo. Se, por um lado, diversos genes controlam a síntese de melanina, cada qual com um histórico evolutivo distinto; por outro, os humanos não parecem ter começado o processo de clareamento imediatamente após deixarem o continente africano e se estabelecerem também na Europa, há cerca de 40 mil anos. Esta última hipótese é apoiada por Jorge Rocha, geneticista da Universidade do Porto cuja equipe de pesquisadores avaliou variações de quatro genes relacionados à pigmentação em populações portuguesas e africanas modernas, concluindo que, no mínimo, três deles apenas tinham sido favorecidos pela seleção natural dezenas de milhares de anos após os humanos deixarem a África.
O estudo de Rocha, realizado em 2012, parece ser confirmado pelo trabalho da equipe liderada pelo geneticista Carles Lalueza-Fox, da Universidade de Barcelona, conduzido em janeiro de 2014, no qual foi sequenciado o genoma da ossada de um caçador-coletor encontrada no sítio de La Braña-Arintero, na Espanha. O genoma desse homem (cuja idade foi estimada em 8.000 anos) revelou que sua pele era escura, sugerindo que a seleção natural a favor da pele clara agiu em um momento relativamente recente na história humana.
A fim de melhor compreender como se deu a mudança na pigmentação da pele dos europeus, o também geneticista Mark Thomas, da University College London, extraiu o DNA de 63 esqueletos descobertos em sítios da atual área da Ucrânia e de regiões adjacentes. Foi possível sequenciar três genes relacionados à pigmentação em 48 desses esqueletos, cujas idades variaram entre 6,5 e 4 mil anos: o gene TYR, envolvido na síntese da melanina; o SLC45A2, que atua no controle da distribuição das enzimas produtoras de pigmentos nos células; e o HERC2, principal gene na determinação das cores castanho e azul dos olhos.
As variantes desses três genes produzem diferentes tonalidades de cores dos olhos, cabelos e pele. A comparação destas variantes antigas com as de 60 ucranianos modernos e com uma amostra de 246 genomas modernos de regiões próximas permitiu a determinação da frequência com que as variantes ligadas a cabelos e peles mais claros, bem como aos olhos azuis, mudaram na população, tendo aumentado significativamente no decorrer do tempo estudado. Em média, os ucranianos modernos possuem mais de oito vezes mais variantes do TYR relacionadas à pele clara, e quatro vezes mais variantes ligadas aos olhos azuis do que os ancestrais ucranianos, ao passo que as populações africanas não têm nenhuma dessas variantes mais claras, informa a equipe em artigo publicado no periódico Proceedings of the National Academy of Sciences.
As evidências indicam que, apesar de os ucranianos pré-históricos terem desenvolvido peles e cabelos relativamente mais claros desde a saída de seus ancestrais da África, a evolução não estava completa. Um modelo de computador programado para distinguir entre a seleção natural e a deriva genética, mudança na frequência de alelos em uma população ocasionada pelo acaso, calculou que os genes para a pigmentação ainda estavam submetidos à força da seleção natural há menos de 5 mil anos. (Testes como este levam em conta o tamanho populacional e a taxa à qual acontecem as alterações genéticas na população, sendo capazes de dizer se a deriva genética responde, por si só, pela velocidade das mudanças evolutivas).
A intensidade da ação da seleção natural sobre os genes relacionados à pigmentação foi tão grande quanto sobre outros genes fortemente selecionados nos seres humanos, como aqueles envolvidos na habilidade de digerir lactose e na proteção contra a malária, diz o próprio Thomas à Science. Para Rocha, a equipe conseguiu “fornecer evidências diretas” de que uma forte seleção foi o a origem mais provável das mudanças no perfil da pigmentação.
Dessa forma, coube aos cientistas dizer por que o vento da seleção natural soprou a favor das tonalidades de pele, cabelo e olhos mais claras, mesmo milhares de anos depois de os humanos deixarem o ambiente de intensa radiação solar da África. O equipe especula que, no caso da cor da pele, as populações antigas estudadas, representantes dos primeiros agricultores, haviam absorvido muita vitamina D a partir da alimentação por peixes e animais quando ainda eram caçadoras-coletoras. Porém, o surgimento da agricultura fez dos grãos (e.g., trigo e cevada) parte primordial da dieta desses europeus, exigindo deles uma maior síntese de vitamina D nas células da pele e tornando a pele clara um instrumento vantajoso.
Nina Jablonski, especialista em biologia e antropologia da Universidade Estadual da Pensilvânia, afirma que o estudo de Thomas e sua equipe fornece evidências de que a redução dos níveis de vitamina D obtidos através da dieta, em função da transição para um estilo de vida agrícola, pode ter desencadeado a evolução da pele clara.
Quanto ao aumento da frequência de alelos para cabelos e olhos claros na população, Thomas supõe que ele pode ter sido causado pela seleção sexual: em teoria, se os homens e as mulheres que portassem esses alelos parecessem mais atraentes aos olhos dos indivíduos do sexo oposto, acabariam tendo mais filhos. Esta abordagem da preferência sexual por indivíduos de aparência rara ou incomum já foi confirmada em outros animais, como os barrigudinhos (guppies), peixes ornamentais vistos em aquários ao redor do mundo.
Fonte: Science
Make It Clear Brasil
Um apoio ao livre pensamento e a um entendimento do mundo baseado em evidências
Comentários