Uma formiga não é popularmente chamada de lava-pés, formiga-de-fogo, formiga quente e formiga-malagueta por acaso. Basta um breve encontro com uma lava-pés para — falo por experiência própria, ressalte-se — que se conheça a dor intensa provocada pela ferroada dela. As formigas-lava-pés também são conhecidas por aterrorizarem outras formigas, matando ferozmente suas concorrentes e tomando seus territórios. Porém, no Texas, as lava-pés encontraram uma concorrente à altura: as “formigas loucas“, que vêm ganhando hegemonia com sua surpreendente tática de neutralização do veneno das inimigas.
Originárias da América do Sul, as lava-pés se espalham, há décadas, pelo sudeste dos Estados Unidos, mas suas fileiras não têm sido capazes de conquistar o estado do Texas. Lá, a formiga louca, nome pelo qual ficou conhecida a espécie Nylanderia fulva graças à trilha confusa e errática que deixa conforme se alimenta, tornou-se uma praga. Um novo estudo concluiu que a arma secreta deste animal é um antídoto próprio que desabilita o veneno das lava-pés.
Assim como a lava-pés, a formiga louca é nativa da América do Sul e foi identificada nos EUA, pela primeira vez, em 2002. Outra característica comum às duas formigas é a capacidade de construir ninhos com muitas rainhas, de forma que as densidades populacionais nos ambientes que invadem são “astronômicas”, segundo Edward LeBrun, ecólogo da Universidade do Texas em Austin. Todavia, enquanto uma (a lava-pés) prefere fazer seus ninhos ao ar livre, a formiga louca pode invadir residências e viver em quadros de luz e até em notebooks, locais onde, frequentemente, destroem os circuitos elétricos.
Para descobrir como as “loucas” resistem à toxina presente no veneno das lava-pés, LeBrun posicionou um grilo morto na divisa entre os territórios de ambas. O pesquisador observou que, depois de uma lava-pés atingir sua oponente com o ferrão, a formiga louca faz um contorcionismo, levando a ponta do seu abdome até a cabeça (veja a imagem acima), e expele uma gota na direção da própria mandíbula. Então, passa as patas pela boca e as usa para espalhar o líquido secretado pelo corpo todo. Ao todo, 93% das formigas loucas sobreviveram aos ataques rivais.
Em outro experimento, LeBrun e sua equipe aplicaram esmalte de unhas na abertura do abdome utilizada para a secreção do líquido, a fim de bloqueá-la. Para criar um grupo controle, aplicaram o mesmo esmalte nas laterais dos corpos de outras formigas loucas. No confronto com as lava-pés, as formigas cujas glândulas não estavam bloqueadas conseguiram sobreviver em quase 100% dos ataques. Já do grupo impedido de secretar, quase metade morreu.
Suspeitando que o procedimento introduzisse um antídoto no organismo do artrópode, o cientista analisou os compostos secretados pelas duas glândulas localizadas na ponta do abdome da formiga louca, tendo comunicado os resultados da análise na revista Science. A principal substância capaz de neutralizar o veneno da lava-pés foi o ácido fórmico do veneno da formiga louca, menos potente (expelido por ela durante as lutas, através de um poro). Constatou-se que o ácido fórmico sintético produzia o mesmo efeito.
A capacidade de proteção do ácido fórmico ainda foi testada através da exposição de outra espécie de formiga a dois compostos distintos: um primeiro, contendo o veneno da lava-pés e o possível antídoto das formigas loucas; e um segundo, misturando o veneno a um placebo. Apenas um quinto das formigas que receberam o placebo foi capaz de sobreviver, ao passo que a totalidade das que receberam o ácido fórmico continuou viva.
O veneno da lava-pés não contém apenas toxinas. No composto, também existem proteínas que permitem a entrada das toxinas nas células do animal atacado. Portanto, LeBrun supõe que o ácido fórmico produzido pela formiga louca destrua exatamente essas proteínas, fazendo com que as toxinas não sejam capazes de penetras as células. Para o ecólogo, a evolução do comportamento de desintoxicação levado a cabo pelas formigas loucas deve ter ocorrido no continente sul-americano, onde os dois tipos de formigas se digladiam há muito tempo.
Sabe-se que outros animais combatem o veneno de seus predadores, competidores ou presas evitando que a toxina se prenda às moléculas-alvo, mas sem quebrar quimicamente o veneno, de acordo com Ashlee Rowe, neurobióloga evolutiva da Michigan State University que não esteve envolvida no trabalho. “Acho que este exemplo é único”, diz ela.
Fontes: Science, Scientific American
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