A ideia de que a vida surgiu a partir de uma “sopa primordial” se popularizou no século XX. Essa linha de pensamento afirma que a energia (vinda de um raio ou do Sol, por exemplo) aplicada sobre pequenas moléculas — que continham o elemento químico carbono — produziu compostos orgânicos simples que, acumulados na água, se transformaram nas complexas cadeias moleculares que sustentam a vida na Terra. Uma nova teoria busca complementar nosso conhecimento a respeito do tipo de interações físicas que levou à evolução da vida, propondo que esta tenha se dado de maneira absolutamente previsível.
De acordo com a física, existe uma grande diferença entre os seres vivos e meros amontoados de carbono: os primeiros tendem a ser muito competentes na captura de energia a partir do ambiente que os cerca, e na dissipação desta energia sob a forma de calor. O professor auxiliar Jeremy England, do Instituto Tecnológico de Massachusetts (MIT), acredita ter desenvolvido uma fórmula matemática que explica a habilidade mencionada com base em princípios estabelecidos pela física: a fórmula indica que, quando um grupo de átomos é impelido por uma fonte externa de energia (como o Sol), e se encontra em meio a um banho térmico (servindo de exemplos o oceano e a atmosfera), ele se reestrutura gradualmente, a fim de dissipar quantidades cada vez maiores de energia. Entenda-se o banho térmico como um sistema termodinâmico cuja temperatura não se altera mediante o contato com um sistema de interesse, no caso, o grupo de átomos.
Tudo isto significa que, sob determinadas condições, a matéria adquire rigorosamente o principal atributo associado à vida. “Comece com um grupo aleatório de átomos e, se projetar luz sobre ele por tempo o bastante, não deve ser tão surpreendente que se obtenha uma planta”, diz England.
A tese de England fornece mais fundamentos à evolução via seleção natural proposta por Darwin, ao invés de substituí-la. O pesquisador não insinua que as ideias darwinianas estejam erradas, “[a]o contrário, estou apenas dizendo que, da perspectiva da física, pode-se chamar a evolução darwiniana de um caso especial de um fenômeno mais geral”.
Especialistas deste campo de estudos manifestaram-se acerca do novo trabalho. Alexander Grosberg, professor de física da Universidade de Nova York, acompanhou o desenvolvimento da teoria desde o início, e diz que sua “grande esperança” é a de que England tenha identificado o princípio físico que conduz à origem e evolução da vida. Já Eugene Shakhnovich, professor de química, biologia química e biofísica da Universidade Harvard, permanece cético. Segundo ele, as ideias “são interessantes e potencialmente promissoras, mas, a este ponto, são extremamente especulativas, especialmente quando aplicadas aos fenômenos da vida”.
Os resultados teóricos do estudo geralmente são considerados válidos. Todavia, a interpretação de que a fórmula proposta representa a força motriz que permeia toda uma classe de fenômenos — dentre os quais, a vida —, ainda não foi provada. Para tanto, serão necessários muitos testes em laboratório.
A teoria de England deriva da segunda lei da termodinâmica, também conhecida como a lei da entropia crescente: sistemas quentes resfriam-se, o gás se dispersa pelo ar, os ovos são mexidos, mas não voltam à ordem anterior espontaneamente. Em suma, a energia tende a se dispersar com o passar do tempo. A entropia é uma medida desta tendência, equivalendo-se ao modo como a energia se encontra dispersa entre as partículas de um sistema, e ao quão difusas estas partículas estão no espaço. O aumento da entropia é uma simples questão de probabilidade: existem mais formas de a energia se dissipar do que de ela ser concentrada novamente. Então, conforme as partículas de um sistema se movem e interagem umas com as outras, a hipótese mais provável é a de que elas tendam a adquirir configurações nas quais a energia fica mais dispersa.
Quando a entropia chega ao seu estado máximo, o “equilíbrio termodinâmico”, a energia está uniformemente distribuída. Por exemplo, imagine que uma xícara de café e o ambiente onde ela é posta atingem a mesma temperatura. Este processo será irreversível enquanto os sistemas (a xícara e o ambiente) permanecerem isolados, de forma que o café não se reaquecerá, pois é muito improvável que a energia dispersa pelo ambiente volte a se concentrar aleatoriamente nos átomos do café.
A abertura de um sistema ao meio externo pode fazer com que ele mantenha sua entropia baixa — ou seja, divida a energia desigualmente entre suas partículas —, através do aumento da entropia do ambiente que circunda o sistema. O grande físico Erwin Schrödinger, em dissertação de 1944 intitulada “O que é Vida?”, ponderou que é exatamente isso o que os seres vivos fazem. Assim, uma planta absorve luz solar, riquíssima em energia, utiliza-a na confecção dos açúcares que lhe são necessários e emite luz infravermelha, uma espécie de energia muito menos concentrada. No total, a entropia do universo aumenta durante a fotossíntese, uma vez que a luz solar se dissipa, mesmo que a planta evite a diminuição da sua própria entropia, mantendo uma estrutura interna ordenada.
Apesar de a vida não violar a segunda lei da termodinâmica, os físicos não vinham sendo capazes de usar o princípio da termodinâmica para explicar por que a vida poderia surgir. Até pouco tempo atrás, não se conseguia prever o comportamento de sistemas que estão longe do estado de equilíbrio, estando conectados ao ambiente externo e sob intensa ação de fontes de energia externas. Isso mudou nos anos 1990, graças ao trabalho dos cientistas Chris Jarzynski e Gavin Crooks, que mostrou que a entropia gerada por um processo termodinâmico, como o resfriamento da nossa xícara de café, corresponde a uma razão ou proporção: a probabilidade de que os átomos sejam sujeitos a tal processo termodinâmico dividida pela probabilidade de que sejam sujeitos ao processo inverso (uma interação espontânea capaz de reaquecer o café, neste caso).
A princípio, a formulação acima pode ser aplicada a qualquer processo termodinâmico, e England decidiu empregá-la na biologia assim que montou seu laboratório no MIT, há dois anos. A partir do trabalho de Jarzynski e Crooks, ele elaborou uma generalização da segunda lei da termodinâmica que se aplica a sistemas de partículas com certas propriedades: (i) os sistemas são fortemente movidos por uma fonte externa de energia, como uma onda eletromagnética, e (ii) podem dispersar calor em um banho térmico. (Este tipo de sistemas inclui todas as criaturas vivas.) Então, England determinou como esses sistemas tendem a evoluir conforme suas irreversibilidades — suas entropias — aumentam.
“Podemos mostrar (…) pela fórmula que os resultados evolutivos mais prováveis serão aqueles que absorverem e dissiparem mais energia dos fatores ambientais externos”, afirma. É possível pensar intuitivamente a respeito: as partículas tendem a dissipar mais energia quando estão em sintonia com a força motriz, ou a se moverem na direção em que esta as empurra, sendo mais provável que se movam nesta direção do que em qualquer outra em qualquer momento. “Isto significa que grupos de átomos cercados por um banho a certa temperatura, como a atmosfera ou o oceano, devem tender, com o tempo, a se arranjarem para ressoarem melhor e melhor com as fontes de trabalho mecânico, eletromagnético ou químico nos seus ambientes”, explica England.
Aquilo que conhecemos por reprodução biológica (a autorreplicação), processo que conduz a evolução da vida na Terra, é um mecanismo pelo qual um sistema pode dissipar quantidades maiores de energia com o tempo. “Uma ótima maneira de dissipar mais é a de fazer mais cópias de si mesmo”, nas palavras do pesquisador. Em artigo publicado em setembro de 2013 no periódico Journal of Chemical Physics, England relatou o montante teórico mínimo de dissipação que pode ocorrer durante a autorreplicação de moléculas de RNA e células bacterianas, e demonstrou que o valor teórico está muito próximo do real valor de dissipação destas replicações. Ademais, o RNA, ácido nucleico que, acredita-se, foi o precursor da vida baseada no DNA, é um material de acesso particularmente fácil. Uma vez que o RNA tenha surgido, a “conquista darwiniana” não seria surpresa, segundo o cientista.
A implicação da teoria de England é a seguinte: muitos fatores contribuíram para a formação da diversidade biológica que vemos hoje, e podemos citar a química da sopa primordial, as mutações aleatórias, a geografia e os eventos catastróficos, entre outros. Porém, o fator que ensejou todo o processo foi a adaptação da matéria movida pela dissipação da energia.
Esse princípio também pode ser aplicado à matéria inanimada e, de fato, cientistas já observaram a autorreplicação em sistemas não viventes. De acordo com uma pesquisa conduzida por Philip Marcus (Universidade da Califórnia) e publicada no periódico Physical Review Letters em agosto de 2013, vórtices formados em fluidos turbulentos replicam-se espontaneamente absorvendo energia do fluido que os cerca. Em estudo de janeiro de 2014, o cientista Michael Brenner (Harvard) e seus colegas divulgaram modelos teóricos e simulações de microestruturas que se autorreplicam. No trabalho, publicado no Proceedings of the National Academy of Sciences, os pesquisadores afirmaram que conglomerados de microesferas revestidas por um material especial dissipam energia através do “aliciamento”, ou da junção, de esferas próximas, formando conglomerados idênticos. “Isto se conecta em muito com o que Jeremy está dizendo”, ressalta Brenner.
Entretanto, a autorreplicação não é a única forma de se dissipar mais energia; uma maior e mais complexa organização estrutural também é. Um vegetal, por exemplo, é muito mais competente na captura e encaminhamento da energia solar do que o seria um punhado de átomos de carbono desestruturados. A partir dessa observação, England conclui que, sob certas condições, a matéria se auto-organiza, tendência que pode ser responsável pela ordem estrutural dos seres vivos. “Flocos de neve, dunas e vórtices turbulentos, todos têm em comum [o fato de] serem estruturas visivelmente padronizadas que surgem em sistemas de muitas partículas conduzidos por algum processo dissipativo”, diz. Nos casos citados por ele, os processos relevantes são, respectivamente, a condensação, o vento e o arrasto viscoso.
Carl Franck, biofísico da Universidade Cornell, comenta o trabalho de England: “Ele me faz pensar que a distinção entre a matéria viva e a não viva não é aguda”. Os próximos anos serão um período de escrutínio das novas ideias, e Jeremy já executa simulações de computador para testar a tese de que os sistemas de partículas adaptam suas estruturas para se tornarem melhores dissipadores de energia. Quanto aos próximos experimentos, estes devem ser conduzidos com sistemas vivos.
A professora de física Mara Prentiss, que possui laboratório em Harvard, sugere que a teoria pode ser testada por meio da comparação de células com diferentes mutações, procurando por uma correlação entre a quantidade de energia que as células dissipam e suas taxas de replicação. “É preciso ter cuidado, pois qualquer mutação pode fazer muitas coisas”, ela adverte. “Mas, se alguém continuar fazendo vários desses experimentos em diferentes sistemas, e se [a dissipação e o sucesso na replicação] estiverem realmente correlacionados, isso sugeriria que este é o princípio de organização correto”. Enquanto isso, Brenner planeja conectar a formulação de England com as suas próprias microesferas e determinar se a teoria prediz quais processos de autorreplicação e auto-organização podem ocorrer, “uma questão fundamental na ciência”, afirma.
Se for provada correta, a abordagem de England ampliará o escopo de análise dos biólogos, fazendo com que pensem nas adaptações presentes na seleção natural em termos de arranjos estruturais movidos pela dispersão de energia. Dessa forma, poderão descobrir que a razão pela qual um organismo possui a característica X, ao invés de Y, não deriva de X ser mais apta do que Y; restrições físicas tornam mais fácil a evolução de X do que a de Y”, por exemplo.
Fonte: Quanta Magazine
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