Dizemos frequentemente que “um automóvel escolhe-se com o coração e não com a razão”. Por isso, é difícil imaginar o seguinte diálogo entre dois amigos:
– Então, o que achas do meu novo BMW?
– Quanto é que deste por isso?
– Cerca de 50 mil euros.
– O quê? Por esse preço compravas dois Citroën!
É difícil imaginar porque isto, até agora, não era algo que fizesse sentido. Quem compra um BMW (substituir ‘BMW’ e ‘Citroën’ pelas marcas da vossa preferência) sabe que, por muito menos, compraria outro carro muito mais barato, do mesmo tamanho e com o mesmo espaço interior que, no limite, cumpriria os mesmos requisitos de transportar a família do ponto A ao ponto B de forma confortável e em segurança.
O dinheiro gasto a mais nota-se noutro tipo de coisas: design, qualidade de construção e materiais usados no interior mas também, claro, o conjunto motor/transmissão, suspensão e comportamento dinâmico, conforto, aceleração, velocidade, etc., etc. No final, e porque o automóvel é, muitas vezes, um símbolo de status económico/social, a marca também conta e um carro alemão (ou sueco, ou britânico, ou um exótico italiano …) traz consigo um peso que vai muito para além de um simples objeto funcional.
Mesmo fatores racionais, como o consumo, que é normalmente menor (embora não necessariamente) nos automóveis mais baratos, raramente pesa na decisão de compra. E o mesmo se pode até dizer da segurança: afinal, foi a Renault o primeiro construtor do mundo a ter um carro com a pontuação de 5 estrelas nos testes do EuroNCAP, antes de marcas com posicionamento superior, quer ao nível da qualidade, quer do luxo.
Vem isto a propósito da constatação de que o que acima ficou descrito é algo que mudou radicalmente com a chegada dos veículos elétricos (EVs) ao mercado. Hoje, o diálogo do início deste artigo acontece mesmo. Basta trocarmos Citroën por Tesla:
– Então, o que achas do meu novo BMW elétrico?
– Quanto é que deste por isso?
– Cerca de 50 mil euros.
– O quê? Por esse preço compravas um Tesla!
Para a maioria das pessoas, pouco interessa se o BMW é mais bonito, tem melhor qualidade de construção, melhores materiais no interior do habitáculo e até um melhor comportamento dinâmico (e não estou a dizer se tem ou não!); no mundo dos EVs, as pessoas procuram basicamente duas coisas, e ambas estão interligadas: autonomia e eficiência.
De repente, marcas que até agora não eram comparadas – como a BMW e a Hyundai, a Mercedes e a Kia ou a VW e a BYD – são colocadas em pé de igualdade. E, frequentemente, não é a marca de prestígio a que ganha na comparação, precisamente porque aquilo que passámos a comparar é diferente do que acontecia até agora. Um vídeo que vi há tempos colocava em comparação direta um Jaguar e um Kia – algo impensável no mundo dos automóveis a combustão mas que passámos a olhar com naturalidade neste mundo de carros eletrificados.
Estou a generalizar, obviamente! Escusam de teclar furiosamente na caixa de comentários para deixar claro que não é esse o vosso caso… Mas assisto a discussões destas todos os dias, quer na “vida real”, quer online.
Num dos últimos artigos que escrevi aqui acabo de certa forma por também falar disso, quando defendo que os construtores europeus estão nervosos perante a chegada das marcas chinesas e parecem não saber como concorrer com a Tesla, propondo ao mercado, a preço superior, modelos com menos autonomia, mas também menor desempenho, do que outros carros do mesmo segmento, como se o peso das marcas continuasse a ter o mesmo valor que tinha há 10 anos.
Uma das coisas que tem certamente influência neste pragmatismo com que se olha para os EVs é o motor elétrico, no sentido de que, por muito diferentes que sejam uns dos outros, os carros elétricos são também muito semelhantes.
Isto tem a ver com a forma como funcionam. Um motor elétrico entrega toda a sua potência a partir das 0 rotações (ou quase, mas vamos assumir que sim, para efeitos de comparação). O “efeito Tesla”, de que há inúmeros vídeos no YouTube, bem se podia chamar o “efeito EV” porque, mesmo em EVs menos potentes, é possível impressionar os amigos com a sensação do binário instantâneo oferecido por qualquer motor elétrico.
Em contrapartida, um motor de combustão interna (ICE) só entrega a potência a um determinado intervalo de rotações. É essa a razão pela qual temos que ter uma caixa de velocidades num ICE (para mantermos o motor na gama de rotações para obtermos a potência necessária) e, num EV, temos normalmente uma transmissão de uma velocidade(1), que se limita a um determinado rácio de desmultiplicação entre o motor e as rodas.
Onde quero chegar é que os carros a combustão são também muito diferentes entre si na forma com os conduzimos precisamente pela diferença dos seus motores e transmissões (e pelo som!). Pelo contrário, os EVs tendem a oferecer uma experiência de condução semelhante… e nem fazem barulho!
É possível que, no futuro, as coisas mudem, à medida a que os consumidores ficarem mais esclarecidos sobre os EVs e muitos deles perceberem que a autonomia, sendo importante, não é tudo. Mas é do presente que estou a falar e, no presente, o paradigma mudou: pela primeira vez, estamos a escolher carros com a razão e não com o coração.
(1) O Porsche Taycan é uma exceção a esta regra, com a sua caixa automática de duas velocidades.
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