No último artigo falei de passagem dos benefícios para a saúde de substituirmos os veículos com motores a combustão (ICE) por automóveis elétricos. Para a maioria das pessoas, esse argumento está entre os últimos no que toca às razões para a eventual mudança para um veículo elétrico; a redução dos custos de operação surge bem lá no topo, junto do acesso à rede de carregamento e à autonomia.
Sei que estou entre uma minoria para quem a maior motivação para a mudança está efetivamente na vertente ecológica: quero andar num carro que não polua. Ou, dito por outras palavras, e como referi num dos primeiros artigos desta série, quero fazer parte da solução e não do problema.
Antes de chegarmos ao cerne da questão, é preciso repisar o óbvio: o transporte individual através de veículos ligeiros de passageiros é uma péssima ideia. Melhor será criar condições para caminhar mais, podermos fazer trajetos de bicicleta e/ou utilizarmos transportes públicos.
Mas tudo isso pode, e deve, ser feito ao mesmo tempo que fazemos a transição de ICEs para EVs. O que não é realista é pensar que, subitamente, podemos estalar os dedos e fazer desaparecer da face da Terra todos os automóveis ligeiros de passageiros.
O lobby do petróleo, de mão dada com muitos fabricantes de automóveis, gosta de lançar a dúvida e sugerir que os EVs, bem vistas as coisas, não são muito melhores para o ambiente do que os ICE. Esse mito já foi desfeito por diversas vezes e, quanto as benefícios para a saúde, eles começam também já a ser visíveis no mundo real, mesmo com a transição elétrica ainda longe do fim.
Sobre o processo de produção dos EVs libertar mais CO2 do que a produção de um ICE equivalente, é outra falácia: algo que só faria sentido se os automóveis fossem feitos para estar parados e não para andarem de um lado para o outro. E, mesmo assim, depende de qual o EV e o ICE de que estamos a falar, claro, para evitarmos comparar o que não deve ser comparado!
Quanto aos malefícios para o ambiente do lítio vs o petróleo, elas esquecem sempre uma coisa essencial: para movermos uma frota de milhões de ICEs precisamos sempre de mais e mais petróleo que, uma vez queimado, irá ficar na atmosfera, contribuir para as alterações climáticas (algo que as próprias empresas petrolíferas sabem desde há décadas) e para piorar a saúde dos habitantes do planeta.
Quanto ao lítio – o principal componente da geração corrente de baterias dos EVs – ele não só não é consumido como pode ser repetidamente reciclado.
Mas um tema que até hoje nunca vi explorado é o que considero ser o “efeito multiplicador” que a transição dos ICE para os EVs nos traz. A necessidade de criar programas de I&D de grande escala para investigação sobre baterias e motores elétricos coincidiu com iguais alterações nas prioridades dos investimentos para produção de energia elétrica, que levaram a que, muito mais rapidamente do que inicialmente previsto, a produção de eletricidade através de fontes renováveis fosse mais barata do que via combustíveis fósseis – e nós sabemos o quão importante é fator preço para que as coisas mudem à velocidade que têm que mudar.
Hoje, centrais eólicas e solares de produção de energia são muitas vezes associadas a conjuntos de enormes baterias para armazenar excessos de produção e libertar energia em momentos de menor (ou inexistente) produção.
Sistemas idênticos, mas à escala doméstica (pequenas moradias), utilizam baterias reaproveitadas de automóveis elétricos. E sistemas V2G (veículo para a rede) prometem o oposto do que alguns profetas da desgraça vaticinavam: utilizar os EVs para estabilizar a rede elétrica.
Só para finalizar, deixo-vos um apontamento de algo que nem reparamos e que, estou certo, terá um impacto significativo no futuro: na garagem do prédio onde vivo (com 3 pisos abaixo do r/c) há um sistema automático de exaustão de monóxido de carbono. O sistema consiste basicamente em dois componentes: uma rede de deteção espalhada pela garagem e um motor de grande potência para evacuar os gases, extremamente perigosos para a saúde humana. Parques de estacionamento subterrâneos públicos usam sistemas idênticos, mas só ao observar o “meu” a trabalhar é que “caí na real”: numa garagem só com EVs, este sistema não tem razão de existir! E, não tendo, também aqui vamos poupar CO2 porque será preciso produzir e instalar menos “cangalhada”.
Onde quero chegar com isto? Que a transição dos ICEs para EVs vai acelerar a descarbonização do mundo de formas diretas, mas também indiretas… a menos que venha aí o hidrogénio e “baralhe” tudo, certo? Bem, é sobre isso que vou falar no próximo artigo desta série.
* António Eduardo Marques conduz diariamente um EV e é responsável pela página Mobilidade Elétrica no Facebook.
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