Refletir sobre punitivismo a partir de uma ideia legislativa para que a misoginia seja criminalizada.
Dirigido pelas irmãs Lana e Lilly Wachowski, Matrix é uma das obras-primas da cinematografia do século 20. Não somente pelos efeitos especiais que na época foram utilizados, mas, principalmente, pela inquietação que criou ao fazer-nos pensar sobre a existência de um poderoso e grande sistema de dominação para o qual somente nos atentaríamos ao ingerir uma pílula vermelha. O filme é genial na exata medida da genialidade de suas diretoras, em cujo currículo também se encontra a fantástica série Sense 8 (que, por sinal, recomendo muitíssimo!).
Se para Neo (personagem principal da trilogia) a pílula vermelha teve o condão de despertá-lo para a realidade na qual raça humana está dominada pelas inteligências artificiais, presa num programa de computador, servindo apenas como fonte de energia; para nós, ela, metafórica e ideologicamente, representa a tomada de consciência que faz perceber como o patriarcado, o capitalismo e o racismo se articulam para conservar e fortalecer cada vez mais o exercício do poder cis-hetero-branco-elitista.
Promover, instigar e incitar a repulsa e a violência às mulheres não é novo na história da humanidade. Submeter, torturar e, inclusive, matar mulheres por serem mulheres é parte de um ciclo odioso de controle do qual apedrejamentos, mutilação genital ou, entre nós, feminicídios fazem parte. Expressões de desprezo e repulsa essas caracterizadoras do que chamamos de misoginia.
Nos termos da proposta, misoginia “inclui injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro; promover discurso de ódio; hostilizar por palavras, cantos, gestos, atos, pessoas em razão do seu sexo feminino.” Esta proposição a de que a misoginia seja considerada como crime, de modo similar ao já tipificado como racismo e ao a este equiparado como homofobia e transfobia.
Tenho dúvidas sobre se um tipo penal aos moldes de crime contra a honra seja o mais adequado. Assim como, enquanto garantista, causa-me espécie a possibilidade de que qualquer lei penal surja no calor dos acontecimentos – como, infelizmente, é a regra em nosso país. Normas de natureza criminal exigem parcimônia em sua elaboração.
Seja como for, não me parece adequado que a proposta seja tomada como uma mera expressão punitivista. Fruto quase que da “ingenuidade” (ou, pior, da “sanha punitiva”, à la a pauta criminal de extrema-direita) de uma parcela do movimento feminista em relação ao sistema penal.
Reafirmo não serem poucos os registros históricos, remotos e contemporâneos, exemplificativos de que em sistemas autoritários, autocráticos e/ou fascistas o despontar da misoginia trata-se de conditio sine qua non. Mulheres livres, pensantes e atuantes são a base para qualquer construção democrática. E, por óbvio, são também uma ameaça a qualquer sistema fora desse espectro.
Dizia eu também, que sublinhar o cunho misógino de toda as espécies de violência contra as mulheres, em especial contra as que exercem altos cargos de poder, como tem ocorrido neste início de século.
Trata-se, sim, de uma inquietação legítima acerca da real razão de ser do próprio sistema penal.
Assim como o racismo (e a LGBTIfobia), a possível criminalização da misoginia provoca o pensamento jurídico.
O momento nos exige amadurecer a ideia legislativa e fazer dela um instrumento a serviço do processo democrático, pois, afinal, se alguém ingeriu a pílula vermelha que fez despertar para a realidade, estas foram as feministas. De um lado, por – sem nenhuma ingenuidade – estarem absolutamente cientes dos riscos e limites que o manejo do direito penal traz. E, de outro, por, de olhos abertos, seguirem na resistência para libertar toda a humanidade.
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