Já tantas linhas foram escritas, e tantas reapreciações feitas, sobre Blade Runner, o terceiro filme de Ridley Scott, que pouco restará dizer. Há quem o defenda com unhas e dentes, e após uma receção inicial, em 1982, pouco mais que tépida, o filme tornou-se presença regular, e cimeira, em listas de “melhores filmes de ficção científica de sempre”. A minha impressão era outra, contudo: apenas o tinha visto uma vez, há muitos anos, e não tinha ficado especialmente impressionado, o que está longe de ser caso único perante os filmes do mais velho dos irmãos Scott (Tony, o mais novo, faleceu em 2012).
Esta revisão, em antecipação à estreia iminente da sequela, Blade Runner 2049, realizada por Denis Villeneuve (o mesmo senhor de O Primeiro Contacto, ótimo filme de ficção científica de 2016 com Amy Adams) trouxe-me, como é habitual em segundas visualizações, coisas que me haviam escapado à primeira. Continuo não completamente convencido, e não estou ainda pronto para me tornar em mais um dos acólitos da obra: há ali qualquer coisa, talvez a interpretação não exatamente convincente de um Harrison Ford, nunca o mais expressivo dos atores, ainda numa fase de cimentação dos seus dois papéis mais reconhecíveis, como Han Solo e Indiana Jones, que me levanta reticências. Mas há muito para gostar aqui.
O golpe de asa principal de Ridley Scott é a forma como faz o ritmo do filme se assemelhar à velocidade aparente da Los Angeles de 2019: cena sucede-se a cena de forma indolente, e a história é contada com parcimónia, sem pressas e sem fogo-de-artifício desnecessário. Lembro-me de no meu primeiro contacto com o filme esse ter sido um dos motivos do desinteresse: uma versão mais nova e menos consciente de mim achou que o filme, simplesmente, demorava muito tempo a fazer os seus pontos, testando a paciência do espetador em mais que uma ocasião (com opinião semelhante fiquei em relação a Alien, outro dos filmes mais apreciados de Ridley Scott, que talvez mereça também uma revisão em breve), sem lhe dar grande coisa em troca.
Mas agora parece-me que o ritmo do filme faz todo o sentido. A história de um conjunto de ciborgues que se viram contra o seu criador, adaptada de um curto romance de Philip K. Dick, tem a sua atração, especialmente quando vista a partir de 2017, quando a questão do aperfeiçoamento da inteligência artificial, e das consequências económicas, sociais e éticas que isso trará, está cada mais na ordem do dia, mas mais interesse tem a imagem desta Los Angeles distópica, de chuva constante e reflexos metálicos (e atente-se à forma como ela se distingue da verdadeira Los Angeles, esse paraíso de constante bom tempo, agora que estamos quase a chegar ao ano em que o filme decorre), filmada com notável verticalidade por Scott, uma cidade em que com a sujidade constante ao nível do solo convive com a opulência de quem tudo controla a partir dos andares de topo dos arranha-céus. Mais que tudo, Blade Runner é um pequeno prodígio técnico, feito numa altura pré-digital com suficiente mestria para não ter razões para se envergonhar trinta e cinco anos depois. Tudo isto é mostrado e amplificado pelas cenas demoradas do filme, e o efeito é por vezes fascinante.
Ao mesmo tempo, Blade Runner é uma espécie de anti-blockbuster: é um filme de um realizador jovem, com estrelas também elas ainda no início de uma carreira (especialmente Harrison Ford mas também, a uma escala menor, Rutger Hauer, que encarna um dos vilões com mais estilo do cinema americano dos anos oitenta) que extravasaria a dimensão que tinha até então; um filme de ficção científica em que marca presença aquele punhado de ideias que sempre associamos ao “futuro”, das cidades cada vez mais verticais aos enormes ecrãs publicitários a clarear o céu, passando pelos inevitáveis carros, ou naves, voadores, mas onde as cenas mais memoráveis – incluindo o confronto final – se passam em edifícios de aspeto gótico, com armas que disparam balas em lugar de lasers e entre um fumo constante a lembrar a revolução industrial, ou cenas, como no momento em que a máquina destrói o seu criador, são iluminadas por velas; e um filme que agora seria uma estreia de Verão mas não contém explosões nem pirotecnia desnecessária (uma lógica de filme-de-Verão adolescente ao qual o próprio Ridley Scott eventualmente sucumbiu), fazendo do seu efeito uma coisa constante e não meramente ocasional.
É por tudo isso que Blade Runner traz à memória, e parece ser um parente mais próximo, mais do que um qualquer peso-pesado da Hollywood da altura, de um filme como Nova Iorque 1997, colheita John Carpenter de 1981. Não poderia haver maior elogio.
[Blade Runner 2049 estreia-se em Portugal na próxima quinta-feira]
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