Não, The Deuce não pertence ao catálogo pós-meia-noite da CMTV. É televisão para gente crescida, mas não esse tipo de televisão para gente crescida, ainda que se mova nos mesmos meios e lhe esteja diretamente relacionada. Não parem de ler ainda.
David Simon não está para brincadeiras. George Pelecanos tampouco. Se há uma ideia que atravessa as várias séries em que um ou ambos os homens estiveram envolvidos até agora, de Homicide: Life on the Street, ainda nos anos 90, a Treme, sobre a vida e as convulsões da Nova Orleãs no pós-Katrina, da seminal The Wire, tida por muito boa gente como um ponto alto ainda por ultrapassar da ficção televisiva americana de anos recentes a esta The Deuce, é a ideia de seriedade, de histórias adultas feita por adultos a pensar em adultos.
Não que não haja, aqui e ali, momentos de abrandamento, fogachos cómicos que permeiam a ação. Numa das temporadas de The Wire (que, escreve David Smith com justeza, parece condenada a um dia figurar no primeiro parágrafo do obituário de Simon), por exemplo, havia uma cena em que um dos personagens tentava embebedar um pato com whisky. No primeiro episódio de The Deuce, a certa altura, um dos gémeos interpretados por James Franco – que parece, por estes dias, ter ganhado o dom da ubiquidade (não tiras férias, James?) – diz ao outro que (numa tradução livre) se a sua mulher tivesse tantos espinhos (“pricks”) a sair dela como aqueles que já nela entraram seria um porco-espinho. Mas estes são momentos que surgem apenas de longe a longe, pontuando de forma agridoce a realidade, poucas vezes muito simpática – do que os envolve. David Simon não está para brincadeiras.
Nova Iorque, 1971. Nova Iorque. 1971. Haverá cidade mais perfeita, e uma época mais acertada, para manter a coerência de um corpo de obra que se tem mantido numa trajetória segura ao longo dos anos? Nova Iorque, anos 70, a Nova Iorque de Travis Bickle, o taxista que dá nome ao filme de Martin Scorsese, e da jovem prostituta que Jodie Foster interpretava nesse momento essencial do cinema dos últimos cinquenta anos. A Nova Iorque pré-gentrificação, cidade imortalizada em muitos grandes filmes (diz-se, não sem um certo tom de fatalismo que parece muitas vezes exagerado, que foi na primeira metade da década de 70 que o cinema americano foi pela última vez feito a pensar nos pais, ignorados a partir de então em favor dos filhos adolescentes, a geração Star Wars – o primeiro filme da saga foi para as salas em 1977 e mudou para sempre as regras do jogo), uma cidade negra, suja e intensamente cinematográfica, onde o crime grassava e os códigos morais eram outros.
Tudo isto está no primeiro episódio de The Deuce, a passar neste momento em Portugal no canal TV Séries. Sabemos que a história vai passar pela indústria pornográfica, que Simon e Pelecanos quiseram usar esse mundo de intensos contrastes para criticar os vícios do capitalismo, e que os paralelos com a atual, deprimente situação do país se tornarão mais evidentes com o decorrer dos oito episódios desta primeira série.
Há sexo – em cenas que não escondem o que tem que ser mostrado mas também não o põem à vista de forma tão explícita ao ponto de ser gratuita como temos visto, noutras paragens, recentemente – mas ainda não há pornografia na primeira hora de The Deuce; Simon e Pelecanos estão mais preocupados, como é de rigor, em introduzir personagens e estabelecer pontos de contato do que em fazer avançar a narrativa.
Mas já há indícios suficientes para percebermos que tudo isto vai desembocar noutra coisa qualquer; há ao longo do episódio uma sensação de aperto crescente, de rolha de garrafa de champanhe prestes a saltar. Há nos gémeos de James Franco, e especialmente no barman que trabalha “em ambos os lados do rio” um misto de agastamento e raiva, humilhação após humilhação, que quase apostamos vai soltar-se de forma mais ou menos violenta no futuro, numa explosão que até tem paralelo já neste episódio quando um chulo (há muitos nas ruas desta Nova Iorque) que até então nos parecia quase gentil se cansa dos caprichos de uma das suas “meninas” e decide pô-la na ordem com recurso a um canivete, na cena mais desconfortável do episódio. E há uma doçura na prostituta independente interpretada por Maggie Gyllenhaal que adivinhamos passageira. Ninguém se aguenta naquele mundo durante muito tempo sem quebrar de alguma forma, aparenta ser a lição. Cá estaremos quando essa altura chegar.
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