Xis, xis, xis.
“Esse jogo parece muito aborrecido”, atirou sem contemplações a minha namorada, deitada no sofá durante uma das minhas várias sessões com Everybody’s Golf, a mais recente iteração de uma série que, espantemo-nos conjuntamente, já tem vinte anos. Uma sentença demasiado fácil, talvez, vinda de alguém cuja experiência com o jogo da japonesa Clap Hanz se resumiu a meia dúzia de vislumbres desinteressados por entre sessões de sono profundo. Mas afinal, também a mim o golfe parece algo desinteressante, sessões longas de caminhada entre tacadas ocasionais. Uma parte muito significativa dos jogadores de Everybody’s Golf, apostaria, nunca pisou um green. E os que o fizeram, ou os que o fazem com regularidade, não são em princípio o público-alvo deste jogo. Esses preferem, bom, jogar golfe.
Xis, xis, triângulo.
A angústia do escriba na altura de compor qualquer coisa sobre um jogo de desporto tem uma excelente razão de ser: não só estes jogos se multiplicam como gremlins – e, tanto quanto sabemos, não lhes acontece nada de especialmente mau quando entram em contacto com a água -, com edições anuais que em muitos casos não passam de sessões de cirurgia plástica ligeira, como a sua fruição parece muitas vezes depender do interesse de base que o jogador tem pelo desporto em questão. É um truísmo difícil de negar: os adeptos de futebol jogam simuladores de futebol (e, ao que parece, os europeus optam esmagadoramente pelo mesmo), os de basquetebol optam pelos de basquetebol, quem gosta de desportos motorizados escolhe uma das milhentas opções na área, e por aí em diante. Cada macaco no seu galho; a polinização cruzada não é um fenómeno que afete grandemente o mundo dos videojogos.
Mas o golfe é outra história: não imaginamos o prototípico golfista a jogar nove buracos na Playstation após ter feito dezoito num campo de golfe no mundo real. Não, não: o golfe virtual está para o jogo real como os first person shooters estão para a simulação militar: o seu papel é o de simulação pura e autocontida, raras vezes o de prolongamento de experiências exteriores. Os tiros quase nunca – por muito que meia dúzia de textos pacóvios e parcamente fundamentados nos queiram dizer o oposto – passam do quarto (ou da sala, ou de seja qual for o lugar que privilegiem; não fazemos julgamentos aqui) para a realidade; com as tacadas, suspeitamos, acontece precisamente o mesmo.
É por isso que um dos grandes trunfos de Everybody’s Golf, com a sua paleta de cores agressivamente vibrantes, a música pop de furar os ouvidos (“Clap your hands!”, gritam os Owl City no vídeo de abertura do jogo, para que não restem dúvidas em relação àquilo a que vamos) e os avatares personalizáveis pouco interessados em fotorrealismos (podemos alterar todos os detalhes da nossa personagem a qualquer altura, e o jogo não se cansa de nos brindar com novas roupas, acessórios, penteados e quejandos a cada torneio que vencemos), é não se levar muito a sério. A mensagem é clara: o golfe pode não ser para todos, tudo bem, mas este jogo é.
Xis, xis, círculo.
É impressionante a quilometragem que certos jogos retiram das combinações mais elementares de botões. Precisávamos de apenas dois para jogar Pong e de pouco mais para passarmos horas intermináveis com os três-quartos de pizza amarela que se chama Pac-man. Cima, baixo, esquerda, direita. A mecânica de Everybody’s Golf tira uma página desse livro fundacional e faz-se quase toda com pouco mais; durante uma grande parte do jogo, não fazemos mais que dar três toques seguidos no xis. É assim que decorrem as partidas: escolhe-se o taco e a bola – e mais vão sendo desbloqueados à medida que nos tornamos mais proficientes e o nível de desafio vai aumentando -, considera-se a intensidade e a direção do vento e faz-se então o tal ritual: xis, xis, xis. Confirmar, aguardar, repetir.
Simples de pegar e jogar, então, ainda que haja variantes (substituir o terceiro xis pelo círculo ou o triângulo permite emendar, numa direção ou noutra, a intensidade da tacada, por exemplo) que vão mantendo a coisa relativamente interessante e atenuando a repetição. As regras tornam-se rapidamente evidentes e é fácil evoluir de inocente novo membro do universo do golfe para especialista em pars e bogeys, birdies, albatrosses (os elusivos albatrozes!) e chip-ins. Um ancião com ar sabido ocupa-se, na altamente redundante home area (um local insípido junto à praia de onde podemos, de forma muito limitada, receber dicas de outros personagens e aceder a torneios, desafios um-contra-um ou às funcionalidades online do jogo), de ajudar o amador com uma série de perguntas sobre o funcionamento do desporto. Everybody’s Golf dá-nos sempre a mão: já lhe dissemos que estamos aqui para toda a gente?
Ao mesmo tempo, Everybody’s Golf esforça-se ao máximo para criar a ilusão de uma diversidade que não existe: num dos ecrãs de carregamento pré-partida, os bem-intencionados autores do jogo relembram-nos que há muitas coisas para fazer quando não estamos a encarnar o nosso Bobby Jones interior: podemos customizar a nossa personagem (gigante bocejo), usar a loja, com dinheiro virtual ou real (mais um par de óculos? Não, obrigado.) ou, cereja no topo do bolo, podemos alterar as definições no menu Options (silêncio desconfortável). Tudo, ou quase tudo, para, praticamente nenhuma uva. No final do dia, damos por nós na enésima sucessão da mesma santíssima trindade de botões. Se isso é ou não suficiente para darmos o nosso tempo por bem empregue, fica ao critério do freguês. Aborrecido? Talvez. Estranhamente cativante, por vezes? Não podemos dizer que não.
Só mais uma vez: xis, xis, xis.
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