Há qualquer coisa de fascinante em ver um filme que sabemos ter padecido de fortes dores de crescimento, como é o caso de Macao, obra de 1952 tida como a penúltima de Josef von Sternberg, realizador austríaco emigrado para os Estados Unidos que, com a alemã e também forasteira em Hollywood Marlene Dietrich, fez alguns dos mais sumptuosos filmes dos anos 30.
De facto, consta que o filme foi uma disputa de egos desde o início, e talvez não pudesse deixar de o ter sido: conjugar Howard Hughes, produtor, homem de negócios, playboy milionário e aviador – que Leonardo DiCaprio interpretou em The Aviator, de Martin Scorcese – com o irascível von Sternberg e colocar-lhes pelo meio um ator nada manso como Robert Mitchum (o senhor love tatuado em quatro dedos e hate nos outros quatro de The Night of the Hunter, o maravilhoso único filme de Charles Laughton) era à partida uma receita perigosa.
O resultado foi um filme rodado em grande parte por von Sternberg mas terminado por Nicholas Ray – imaginemos uma partida futebol em que, a alturas tantas, sai Ronaldo e entra Messi e teremos uma equivalência não completamente descabida -, um film noir não exatamente do cânone mas com suficientes razões de interesse (os nomes, por amor de Deus, os nomes) para merecer ser visto.
Está tudo dito desde o início: um trio improvável de desconhecidos num navio a caminho de uma Macau que ainda era território português, facto mencionado e visível uma vez ou outra, ainda que quase ninguém ali fale nada que não Inglês, local que preservava todo o fascínio e todo o exotismo do “oriente”, sempre o cenário perfeito para histórias de criminosos coloridos e detetives com “um passado”.
Um trio, dizia, que inclui um americano (Mitchum) à deriva, buscando novo rumo para a sua vida e uma femme fatale (Jane Russel) largamente com objetivos semelhantes. Nem cinco minutos após se conhecerem beijam-se pela primeira vez, num daqueles arrebatamentos apenas explicáveis pelo cinema, e daí em diante envolvem-se num jogo de aproximação e fuga provocado pela tensão entre um milionário dono de casinos – tem que haver um em Macau, não é? – e o terceiro elemento desse improvável triunvirato, um outro americano (William Bendix, mais velho, que se apresenta como caixeiro-viajante em Macau à procura de fazer fortuna e que pode não ser quem aparente.
A ilha de Macau torna-se, assim, no “paraíso dos rapazes maus”, título dado ao filme, de forma feliz, em França. Enquanto esses rapazes, com Jane Russel pelo meio, entram em confronto por todas as razões mas essencialmente por apenas uma, ela, na rodagem do filme também os rapazes maus, Hughes, Sternberg e Mitchum se colocavam frente a frente. Macao pode não ser um grande filme, mas é sem dúvida um exemplo inequívoco de como por vezes o que se passa por detrás das câmaras acompanha aquilo que elas capturam.
[Macao passou na RTP Memória no passado dia 18]
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