Quando se fala em “politicamente correcto”, entramos num caminho perigoso, cheio de armadilhas: o próprio autor tinha previsto um título diferente – “Contos de Fadas para Um Mundo Moderno” e foi o editor quem o alertou para o preconceito heterossexualista implícito.
James Finn Garner, natural de Detroit, nos Estados Unidos, publicou pela primeira vez em 1994. “Politically Correct Bedtime Stories, foi o primeiro de uma trilogia, traduzido em 20 línguas diferentes, vendeu mais de 2,5 milhões de cópias e permaneceu durante mais de 65 semanas entre os New York Times Best Sellers. Em Portugal foi editado pela primeira vez em 1996, com o título “Histórias Tradicionais Politicamente Correctas”.
É portanto compreensível que o leitor esteja mais alerta e com um espirito mais crítico na leitura dos pequenos contos que Garner reescreveu. Por vezes perguntamo-nos se a sua interpretação é assim tão politicamente correcta como se pretende… mas afinal, a que nos referimos quando falamos de “politicamente correcto”? Bem… referimo-nos a uma imensidão de preconceitos e estereótipos que nos estão tão enraizados que muitas vezes nem damos por eles, nem mesmo quando fazemos questão de os denunciar. Há que valorizar o esforço que implica a utilização de linguagem inclusiva num discurso humorístico.
Neste primeiro livro, Garner reformula várias histórias tradicionais, lembrando que na época em que elas foram criadas, faziam bastante sentido, mas actualmente nem tanto. Apresenta-nos uma “Capuchinho Vermelho” não como uma menina frágil e inconsequente, mas como uma rapariga que tem total confiança na sua sexualidade emergente, sem medo de penetrar na floresta, “óbvia imagética freudiana”. A sua reacção de espanto ao descobrir o Lobo vestido com a camisa de dormir da avó é explicada de modo a que não se pense que se tratou de uma reacção discriminatória fase ao travestismo do animal. A explicação é pertinente, claro! Escrita com muito humor e… inclusiva.
Em “Os três porquinhos”, estes, a defender a sua última casa das investidas do lobo, entoam canções de solidariedade e escrevem cartas de protesto às Nações Unidas. Não se lamentam de baba e ranho, como na história tradicional. Garner não precisa de dizer muito mais, para imaginarmos os animais, de braço dado, a cantar “Grândola Vila Morena”, ou a gritar “O porco unido jamais será vencido”, “Somos muitos, muitos mil, para mandar o lobo para o covil”…
Para terminar, o grande baile, da ”Gata Borralheira”, afinal não passou de uma grande rebaldaria: um desfile de mulheres agrilhoadas em espartilhos e saltos altos, para agradarem aos homens, que completamente alheios ao esforço feminino, acabam embrulhados numa cena de pancadaria disputando a rapariga misteriosa de perigosos e nada práticos sapatos de cristal. Quando o relógio dá a meia-noite, a Gata Borralheira liberta-se das roupas e dos sapatos, espreguiça-se e coça as costas. As outras imitam-na, livram-se de coletes e espartilhos, dançam, pulam e guincham em roupa interior. Os homens não assistem porque continuam à bulha uns com os outros.
É impossível não referir que alguns dos finais sugeridos por Garner acabam por cair no “politicamente não tão correcto como isso”, são finais alternativos, disso não há dúvida, mas não conseguem libertar-se completamente de preconceitos ou então são demasiados cruéis – não esquecer que estamos perante conteúdos para adultos – como o Príncipe Sapo, que depois de desafiar a princesa para a questão de sexo entre espécies, se revela um velho careca em calções axadrezados de golfe, com uma ambição desmedida no sector imobiliário e planos para construir um empreendimento turístico, destruindo a floresta. Não é preciso dizer mais para que se imagine como a princesa, uma moça com preocupações ambientais, reagiu de imediato, colocando fim à ameaça.
Culturalmente, temos séculos e séculos de interiorização de traços que nos permitem identificar e classificar o que nos rodeia, dentro dos parâmetros que nos foram transmitidos. De geração em geração somos “construídos” para sermos animais sociais, com o que isso implica de justo e de injusto, de politicamente correcto ou incorrecto. Temos que desculpar o autor, e elogiá-lo pelo esforço.
Este pequeno livro – “Histórias Tradicionais Politicamente Correctas”- faz-nos rir, dá vontade de ler em voz alta e partilhar o seu sarcasmo…e pode ser um aviso aos pais para pensarem bem que tipo de histórias estão a contar aos seus filhos na hora de ir para a cama. É um convite para as reinventarem.
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