Para a bioquímica, solucionar o mistério da origem da vida na Terra é como se perguntar quem veio primeiro: o ovo ou a galinha. Se, por um lado, as moléculas que hoje replicam as informações genéticas, DNA e RNA, o fazem construindo proteínas, por outro, aquelas precisam do apoio destas para se replicar.
Apesar de ter se perdido no tempo, a química que deu origem à vida vem sendo fonte de hipóteses e experimentos, normalmente fundamentados na combinação de compostos químicos relativamente abundantes durante a juventude do nosso planeta, e sua conversão em estruturas orgânicas gradualmente mais complexas, capazes de produzir cópias de si mesmas.
Nesta semana, em estudo publicado no periódico Nature Chemistry, o químico John Sutherland, da Universidade de Cambridge (Reino Unido), e sua equipe de pesquisadores apresentam uma possível resposta para o dilema do surgimento das primeiras moléculas genéticas. Segundo eles, moléculas orgânicas e reações simples podem formar naturalmente as três classes de moléculas necessárias para a “faísca” que produziu a primeira forma de vida, quais sejam os ácidos nucleicos, lipídios e aminoácidos.
Em laboratório, Sutherland e seus pares obtiveram êxito na criação de moléculas precursoras dos ribonucleotídeos (blocos de construção dos ácidos nucleicos) partindo do cianeto de hidrogênio (HCN), sulfeto de hidrogênio (H2S) e de uma fonte de luz ultravioleta. A equipe ainda atenta para o fato de as condições que geraram os precursores dos ácidos nucleicos também terem dado origem a moléculas precursoras dos lipídios e dos aminoácidos.
A Terra sofreu um bombardeio de cometas — ricos em HCN — durante centenas de milhões de anos no seu processo de formação, além de ter contado com a presença de metais catalisadores das reações e, é claro, com a radiação UV proveniente do Sol. Entretanto, Sutherland alega que as reações necessárias para produzir cada tipo de ribonucleotídeo diferem suficientemente umas das outras para que exijam diferentes configurações geológicas e catalisadores distintos, o que torna improvável que todas as precursoras tenham surgido em um mesmo ambiente. Mesmo assim, sua observação não elimina a possibilidade de que um breve conjunto de reações químicas possa ter produzido os principais compostos orgânicos que compõem os seres vivos simultaneamente.
Portanto, as moléculas precursoras podem ter sua origem em pontos distintos do planeta, em função de variações na composição química do ambiente e na energia captada. Faltaria um elemento para reuni-las e, de acordo com os investigadores, fluxos de água as teriam levado a um corpo d’água comum, onde interagiram.
As conclusões do trabalho parecem endossar a hipótese (previamente defendida pelo próprio Sutherland) de que o RNA teria sido o primeiro replicador da vida, uma vez que se forma exatamente pela união de ribonucleotídeos.
Se a vida realmente surgiu a partir de uma reunião de moléculas orgânicas no ambiente aquoso denominado “sopa primordial”, ainda não se sabe ao certo. Cabe à nossa curiosidade e à nossa engenhosidade especular quais eventos seriam necessários para que isso ocorresse e experimentá-los, pondo-os à prova. Certo, por ora, é que as perguntas ficam cada vez mais desafiadoras.
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