Um século de pesquisas sobre a ameba Entamoeba histolytica levaram a um paradigma a respeito do modo como ela destrói células saudáveis, segundo o qual ela mataria as células com uma substância química antes de lançar-se sobre elas e engoli-las. Agora, uma equipe de cientistas acredita ter quebrado essa antiga concepção: em novo estudo, publicado na Nature, o grupo afirma que a ameba mastiga lentamente suas presas enquanto estas ainda estão vivas.
A cada ano, 50 milhões de pessoas são infectadas pelo protozoário E. histolytica, das quais 100 mil acabam morrendo em decorrência de problemas de saúde causados por esta ameba, comum em regiões mais pobres do globo, como América Latina, África e Sul da Ásia, nas quais é transmitida via água e alimentos contaminados. Portanto, o conhecimento adquirido pela pesquisa mais recente pode ajudar a reduzir a incidência de infecções provocadas pelo micro-organismo.
Sabe-se que muitos indivíduos infectados pela ameba não demonstram sintomas; os parasitas vivem no seu intestino, alimentando-se de bactérias, sem causar qualquer problema para o hospedeiro. No entanto, outros hospedeiros não contam com tal “cordialidade” — neles, o parasita ataca o próprio intestino, e as consequências disso podem ser úlceras intestinais e/ou um quadro fatal de diarreia, por exemplo.
Comidas vivas
Apesar da inconstância do comportamento da ameba, há muito se compreendeu que ela só mata as células com as quais entra em contato direto, atando-se às mesmas com o uso de açúcares (carboidratos) específicos, as lectinas. A microbióloga Katherine Ralston, da Universidade da Virgínia, explica que os pesquisadores consumavam pensar que as lectinas, de alguma forma, matavam as células, e “então, os parasitas comeriam as células mortas”.
Devido à fagocitose — processo no qual um organismo unicelular engloba matéria através da expansão da membrana plasmática e, posteriormente, a digere — praticada pelos parasitas, a ciência acreditava que as amebas ingeriam células inteiras. Porém, a partir de novas técnicas de microscopia, Ralston e seus colegas das universidades da Virgínia e Jawaharlal Nehru, na Índia, obtiveram imagens claras do processo de alimentação da E. histolytica, e suas conclusões indicam que ele ocorra enquanto as células estão vivas.
No estudo, amebas foram postas em contato com células intestinais humanas geneticamente modificadas para adquirir fluorescência, de forma que a interação entre os organismos pudesse ser melhor observada. Com apenas um minuto de contato, percebeu-se que os parasitas arrancavam e digeriam fragmentos das células humanas, vistas sob a forma de material fluorescente dentro das amebas. A partir da primeira “mordida”, uma ameba continua retirando pedaços da célula até a morte desta, cerca de 10 minutos depois de iniciada a refeição.
Uma mordida levava a mais mordidas, ressalta Ralston, “e isto estava acontecendo enquanto as células humanas estavam vivas”. Esse processo passou despercebido por todos os pesquisadores do campo por mais de cem anos, segundo William Petri, coautor do estudo e especialista em E. histolytica da Universidade da Virgínia.
Aparentemente, as mordiscadas da ameba se interromperam com a morte das células, momento a partir do qual os parasitas se separam destas. O mesmo procedimento foi verificado com células sanguíneas humanas e tecido intestinal de camundongos. Contudo, os pesquisadores ainda não estavam convencidos de que o lento e progressivo esfacelamento provocado pela ameba era o real causador da morte celular; então, administraram uma droga que interfere na capacidade de a ameba se remodelar para conseguir morder. O resultado da aplicação da droga foi uma redução dos ataques e, consequentemente, da morte celular.
Por outro lado, amebas geneticamente modificadas para não produzir as proteínas e lectinas geralmente associadas ao ambiente onde as parasitas entram em contato com as presas humanas não tiveram redução de apetite. Tomados em conjunto, os dados sugerem que o processo de morder mata e danifica, de fato, as células atacadas pelo protozoário, e que as lectinas podem induzir ou regular este comportamento.
Se confirmadas por experimentos futuros, as conclusões podem abrir caminho para novos tratamentos da amebíase, diz Ralston: “[s]e pudermos entender como a ameba morde, isto seria um bom alvo para drogas terapêuticas”.
Fonte: Science
Make It Clear Brasil
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