Conforme uma pessoa toca um instrumento musical ou se prepara para chutar uma bola de futebol, seu cérebro constantemente coordena o controle sobre os músculos do corpo e, portanto, sobre os movimentos. Mas como o órgão reconhece os movimentos errados, a fim de que possa corrigi-los? Para efetuar este trabalho, agem os neurônios que orquestram os movimentos, as células de Purkinje, e neurônios que reportam ao cérebro — fornecem um feedback — quando ocorre um erro ou uma situação inesperada, as fibras trepadeiras. Juntos, os dois tipos de células aprimoram nossas habilidades motoras.
No entanto, uma situação paradoxal permeia o relacionamento entre esses neurônios: apesar de as fibras trepadeiras enviarem sinais às células de Purkinje quando um erro precisa ser comunicado, elas também o fazem espontaneamente, cerca de uma vez por segundo. Até agora, não parecia haver qualquer processo de identificação, por parte das células de Purkinje, que lhes permitisse diferenciar legítimos sinais de erro dos demais.
Pesquisadores da Universidade da Pensilvânia (UPenn) e da Universidade de Princeton começam a desvendar esse mistério, que se arrasta há décadas. De posse de uma técnica de microscopia capaz de mostrar a sinalização química entre as fibras trepadeiras e as células de Purkinje dos cérebros de cinco camundongos, a equipe da Pensilvânia demonstrou, pela primeira vez, que existe uma diferença mensurável entre sinais “verdadeiros” e “falsos”.
O estudo que resultou na descoberta foi conduzido por Javier Medina, professor do Departamento de Psicologia da Escola de Artes e Ciências da UPenn, e Farzaneh Najafi, estudante de pós-graduação do Departamento de Biologia da mesma universidade. Os cientistas da UPenn colaboraram com Andrea Giovannucci e Samuel Wang, ambos de Princeton. As conclusões, publicadas no periódico Cell Reports, deverão auxiliar futuros estudos sobre a coordenação motora.
Comando central
O cerebelo (veja sua localização no cérebro na imagem ao lado) é um dos centros de controle motor do cérebro. Nele, milhares de células de Purkinje coletam informações das demais áreas cerebrais e as direcionam aos neurônios motores que ativam os músculos. Cada uma dessas células recebe sinais de uma fibra trepadeira que, por sua vez, coleta dados dos músculos aos quais o sistema está conectado. Segundo Medina, o que mais impressiona nas fibras trepadeiras é o fato de não se tratarem de meros neurônios sensoriais, pois “elas não apenas dizem ‘Algo tocou minha face’; elas dizem ‘Algo tocou minha face quando eu não esperava'”.
Este tipo de mensagem é o que nos impede de sentir cócegas com o nosso próprio toque, por exemplo, uma vez que parte do cérebro automaticamente espera a sensação que virá do contato com os dedos que comanda. Entretanto, se o toque for feito por outra pessoa, o cérebro não consegue prevê-lo de igual maneira, fator este que leva à sensação das cócegas.
Graças ao sistema de resposta às sensações inesperadas, podemos concluir que as fibras trepadeiras não apenas alertam o cérebro de que podemos estar em uma situação de risco, como o ajudam a melhorar um movimento quando determinada ação não sai conforme o desejado. “A sensação de que os músculos não se movem do modo como as células de Purkinje os direcionam também conta como inesperada”, diz Medina. Assim, caso um passe, chute ou arremesso (desportivamente falando) não atinja o objetivo que o autor tinha em mente, a célula trepadeira diz à de Purkinje: “Pare! Mude! O que está fazendo não está certo!”.
Medina comenta que, quando os sinais de erro chegam às células de Purkinje, elas mudam suas conexões (sinapses) com o restante do cérebro, fortalecendo-as ou alterando-as ligeiramente. Como estão intimamente ligadas aos neurônios motores, “as mudanças nessas sinapses resultarão em mudanças nos movimentos que a célula de Purkinje controla”. Este fenômeno, de suma importância para o aprendizado e aprimoramento de comportamentos, leva o nome de neuroplasticidade: as novas conexões formadas em resposta aos sinais de erro permitem ao cerebelo enviar melhores instruções motoras na próxima vez em que a ação for realizada.
É assim que as células analisadas no estudo nos ensinam a corrigir nossos movimentos.
Que sinal é esse?
Voltemo-nos neste instante ao paradoxo que os cientistas enfrentaram. Como mencionado acima, as fibras trepadeiras enviam sinais espontâneos às células de Purkinje, mesmo que não tenham qualquer erro ou estímulo inesperado para comunicar. O problema é a capacidade de identificação dos sinais “falsos”, que não sugerem a necessidade de qualquer alteração sináptica nas células de Purkinje, e dos “verdadeiros”, aos quais o cerebelo deve dar atenção. Medina e seus colegas desenvolveram um experimento capaz de testar a possibilidade de haver alguma diferença mensurável entre os dois tipos de sinais.
Os pesquisadores puseram camundongos em esteiras para que estes corressem enquanto suas cabeças eram mantidas imóveis. Em seguida, leves sopros de ar aleatórios atingiram as faces dos animais, fazendo com que seus olhos piscassem. Uma técnica de microscopia não invasiva — a microscopia de excitação por dois fótons (fotões), tecnologia que usa um laser infravermelho e uma tinta refletora na apreciação da composição química de tecidos vivos — foi empregada na visualização da maneira como as células de Purkinje relevantes reagiram. Sinais nervosos entre os neurônios são transmitidos por meio da alteração nas concentrações de cálcio nas células, cabendo à tecnologia aplicada medir a quantidade de cálcio presente nas células de Purkinje em tempo real.
Na qualidade de estímulos inesperados para os roedores, os sopros de ar deram aos cientistas a possibilidade de comparar diretamente as diferenças entre sinais legítimos e espontâneos nas células de Purkinje relacionadas às pálpebras, responsáveis pelo piscar dos olhos. Descobriu-se que a célula de Purkinje se enche de mais cálcio “quando a fibra trepadeira correspondente envia um sinal associado àquele tipo de dado sensorial, ao invés de um espontâneo”, afirma Medina.
O real mecanismo por trás da diferenciação entre os dois tipos de sinais ainda é uma questão em aberto. Algumas hipóteses sugerem que o número e o espaçamento temporal entre os impulsos elétricos que partem das fibras trepadeiras podem ser significantes. Os pesquisadores da UPenn e seus pares de Princeton ainda suspeitam que as células de Purkinje possam responder de forma diferente quando um sinal proveniente de uma fibra trepadeira está em sincronia com sinais advindos de outras regiões do cérebro.
A confirmação ou rejeição de tais teorias não muda o fato de que as células de Purkinje são, de fato, capazes de distinguir erros motores de meros sinais espontâneos, habilidade que deverá ser amplamente considerada pelo campo de pesquisas em futuras investigações a respeito das bases da neuroplasticidade e do aprendizado. Para Medina, outra característica a ser considerada pelos especialistas diz respeito ao tamanho do erro e, por conseguinte, à complexidade dos ajustes nervosos necessários para sua correção. “Esta espécie de informação parece nos ser necessária para que nos tornemos muito bons em qualquer tipo de atividade que exija controle preciso”, conclui o cientista.
Fonte: MedicalXpress
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