Há algumas semanas, no dia 4 de fevereiro, uma plateia formada por milhares de pessoas assistiu — pela internet ou diretamente do salão do Museu da Criação, em Petersburg, Kentucky —, a um debate quanto à viabilidade do criacionismo enquanto teoria científica, opondo a visão do criacionista Ken Ham, presidente da organização Answers in Genesis (AiG) à do educador científico e engenheiro Bill Nye.
A AiG se dedica à divulgação do criacionismo da Terra Jovem, crença religiosa segundo a qual o deus abraâmico teria dado origem ao universo e à vida na Terra em cerca de 6 mil anos, seguindo uma interpretação literal do livro do Gênesis, presente no Tanakh judaico e na Bíblia cristã. Por outro lado, Nye, famoso pelo programa televisivo educacional Bill Nye the Science Guy, transmitido na década de 1990, fez carreira como engenheiro mecânico na Boeing e hoje se dedica à divulgação e compreensão científicas.
Aqueles que, como eu, acompanharam o debate, conheceram melhor a principal característica da corrente criacionista liderada por Ham: a de que a ciência pode ser dividida em “ciência observacional” (ou experimental) e “ciência histórica”. A primeira aplica o método científico na observação, mensuração e experimentação dos fatos naturais. No entanto, para Ham, quando falamos das nossas origens e, portanto, quando falamos do passado, a ciência observacional não é suficiente, uma vez que, simplesmente, não estávamos presentes para observarmos a realidade em questão. A ciência histórica — compreendida por áreas de estudo que chamaríamos de astronomia, geologia e biologia evolutiva — existe para preencher este vazio.
À primeira vista, pode parecer que haja, de fato, uma diferença entre os âmbitos experimental e observacional da ciência. Um experimento em laboratório proporciona ao cientista que o conduz um amplo controle sobre o estabelecimento de relações de causa e efeito, por exemplo. Porém, afirmar que esta diferença qualitativa se traduz em uma diferença substancial entre as ciências hipotéticas propostas por Ham “é demonstrar um equívoco fundamental sobre a própria natureza da ciência”, disse o físico Lawrence Krauss, que estuda as origens do universo na Universidade Estadual do Arizona, em artigo publicado na versão online da revista The New Yorker.
Krauss argumenta que, se a função da ciência fosse simplesmente a de contar “histórias sobre a história”, ela não seria mais verídica do que quaisquer mitos religiosos; na verdade, as histórias que a ciência realmente conta possuem consequências empíricas e, sobretudo, o poder de fazer previsões empiricamente testáveis. Assim, para ele, toda ciência é histórica, no sentido de podermos fazer previsões acerca de eventos passados e confirmá-las (ou refutá-las) combinando informações obtidas em laboratório e evidências vindas de objetos remanescentes — como um material biológico ou os raios gama de uma explosão estelar. (A propósito, no debate mencionado, Ham refutou a maioria dos métodos de datação radiométrica por considerá-los inconsistentes.)
A partir disso, os cientistas podem fazer previsões sobre eventos futuros e aceitar ou rejeitar seus modelos com base na capacidade de explicação inerente a eles. “Previsões sobre o futuro, mais do que o foco no passado, são aquilo que dá à ciência sua capacidade definitiva de poder explanatório e tecnológico”, conclui Krauss em seu artigo.
Diante dessa introdução, lanço a seguinte questão: o que significa tirar de alguém o acesso a explicações grandiosas e plausíveis (da origem da espécie humana, da deriva continental e da formação do Sistema Solar, por exemplo), geradas a partir do emprego do método científico, e deixar, em seu lugar, conceitos e histórias não mais verossímeis (as palavras “There is a book…“, “Existe um livro…”, proferidas muitas vezes por Ken Ham em analogia ao livro sagrado dos cristãos, ressoam na minha cabeça), cujas crenças contam com pouco ou nenhum apoio factual?
Significa tirar a humanidade do pecado, de um caminho de dor e destruição. Ao menos é isso o que sugerem alguns dos cristãos entrevistados pelo documentário “Questioning Darwin” (“Questionando Darwin”), produzido pelo canal norte-americano HBO.
A origem dos problemas
O criacionismo da Terra Jovem não consegue lidar com a teoria da evolução das espécies via seleção natural, afinal, este processo requer uma escala de tempo na magnitude dos milhões de anos. Além disso, o teor revolucionário das ideias de Charles Darwin põe deus em um lugar “tão remoto, que nós podemos ignorá-lo seguramente”, segundo o Dr. David Menton, membro do AiG, de forma que tais ideias, desde a publicação do livro “A Origem das Espécies” (1859), sempre estiveram atreladas ao pecado da heresia.
Mark Joseph Stern, colaborador da revista online Slate, extraiu do documentário outra fonte de objeção dos fundamentalistas à seleção natural. Nas palavras do pastor Joe Coffey:
“Se tudo o que somos é produto deste processo de mutações aleatórias, então, de onde vem a moralidade? De onde vem a esperança? De onde vem o amor? De onde realmente vem qualquer coisa que nos torna seres humanos?”
Stern observa que a falta de compreensão da teoria e das suas consequências leva muitos criacionistas a crerem que os
“humanos devem ter sido projetados por Deus; se não tivéssemos sido, então seríamos meros animais, sem moralidade e dignidade, destinados a uma vida deplorável e inútil de dificuldade e dor.”
Ideologias como esta só fariam mal a quem as aceita, não fosse um detalhe fundamental: o credo é ensinado às crianças, muitas vezes em escolas financiadas por dinheiro público. O simples estudo da evolução constitui um pecado.
“O que [Darwin] fez é pior do que assassinato”, afirma um criacionista entrevistado. Outro diz que “[t]oda a morte e sofrimento que vemos aqui não é resultado de um Deus criador. É o pecado”, razão pela qual parte das crianças dos Estados Unidos, por exemplo, recebe uma educação doméstica. Na verdade, trata-se de uma doutrinação, como revela Becky Patterson: “Nós alertamos nosso filho de que haverá muitas pessoas que não vão concordar que Deus criou este mundo em seis dias literais”, e que, portanto, “[e]le precisa ter uma fé forte e acreditar na palavra de Deus para ser capaz de defender isso mais tarde”.
O criacionista Ken Ham disse, no debate com Bill Nye, que as escolas que vêm ensinando a evolução têm, de fato, ensinado o ateísmo. Como, na visão fundamentalista, questionar o livro sagrado é caminho certo para a danação eterna, eis o porquê da necessidade de se proteger as crianças do desenvolvimento intelectual pecaminoso.
Iluminação
Para não desapontar o leitor habituado à divulgação científica que faço regularmente no TecheNet, gostaria de finalizar este artigo com um pouco de ciência, em particular, a física de partículas.
A observação dos neutrinos solares, realizada pelo cientista Ray Davis e seus colegas a partir dos anos 1960, foi possível graças à utilização de um tanque cheio de líquido de limpeza instalado no fundo de uma mina na Dakota do Sul. A profundidade foi necessária para proteger o detector dos demais raios cósmicos que atingem a superfície da Terra, ao passo que o líquido de limpeza era especial por ser uma fonte barata de cloro. Modelos previam que, dos bilhões de neutrinos que atravessariam o detector diariamente, em média, um iria interagir com um átomo de cloro, transformando-o em argônio.
A tarefa de detecção foi bem sucedida, e outros experimentos validaram os resultados obtidos por aqueles pesquisadores, fato que demonstrou a retidão do modelo de estrutura do Sol que os físicos vinham estudando até então, modelo este que emprega a mesma física que os testes derivados dos dados dos neutrinos. Isto prova a natureza do núcleo extremamente denso do centro do Sol, fornalha onde os neutrinos solares são produzidos, afirma Lawrence Krauss.
Uma implicação da conformidade do modelo é a de que a luz gerada no núcleo do Sol através de reações nucleares leva quase um milhão de anos para escapar desse núcleo e se tornar visível aos nossos olhos. Krauss pondera:
“Portanto, quando sentimos o calor da luz do Sol em um dia quente de verão, estamos fazendo ciência histórica. E, se o Sol tivesse apenas seis mil anos de idade, ele não brilharia como o faz enquanto estou aqui e escrevo isto, em Phoenix. Nem brilharia em Petersburg, Kentucky, sobre o Museu da Criação e Ken Ham.”
A imagem de destaque deste artigo — uma cena do documentário Questioning Darwin — é propriedade do canal HBO.
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