“Na primeira manhã que te perdi
Acordei mais cansado que sozinho
Como um conde falando aos passarinhos
Como uma bumba-meu-boi sem capitão […]”
Naquela manhã, permanecera debaixo das cobertas até mais tarde que o costume. O vento frio que sopra do norte, muito comum nesta altura do ano, batia à sua porta. Era hora de levantar e encarar às agruras cotidianas, disso a Menina já bem sabia. Pesadelos obrigaram-na a madrugar e o vazio do lado esquerdo da sua cama era tão gigantesco quanto aquele deixado em seu peito ainda na noite anterior. Apaixonara-se outra vez, a Menina. Paixão desmedida, como é força do hábito naquele ninho. E, outra vez, deixaram-na com o vazio que só se preenche com a coragem para amar.
“[…] E gemi como geme o arvoredo
Como a brisa descendo das colinas
Como quem perde o prumo e desatina
Como um boi no meio da multidão […]”
De um lado para o outro, remexia-se inquieta, dando conta a si mesma que aquele não era um ninho para para pássaros solitários. O cheiro dEle ainda estava contido no travesseiro encaixado em seus braços. Era mesmo assim que dormia na ausência do seu eleito: abraçada aos resquícios da sua outra metade, agora distante, outrora pele com pele. Chorou, a Menina. Mas aquelas não eram as primeiras lágrimas que o ninho acalentava. Uma saudade avassaladora e inevitável apoderou-se daquele peito. E aninhada às suas cobertas, resistiu ao chamado da vida que, ao relento, a espreitava lá de fora.
“[…] Na segunda manhã que te perdi
Era tarde demais pra ser sozinho
Cruzei ruas, estradas e caminhos
Como um carro correndo em contramão […]”
Os versos de uma canção antiga martelavam-lhe o juízo naquele despertar. Tinha o coração aos pulos e um vazio brutal apertava-lhe o peito. Era difícil respirar e, com muito esforço, tentava convencer-se de que sempre o fizera, que encher e esvaziar os pulmões era tarefa simples, aprendida desde os primeiros segundos fora do ventre de sua mãe. Mas, naquela manhã, não havia tarefas simples. Era “cliché” e ela bem o sabia, mas amava-O com cada célula do seu corpo, de dentro para fora, de corpo, alma e coração. Faltava-lhe o ar só de lembrar da existência daquele par de olhos negros que a encantara desde o primeiro segundo em que fitou os seus. Encolheu-se e, pequenina naquela enorme cama, chorou mais um bocado. “A saudade é fodida!”, confessou a Menina ao seu travesseiro, companheiro das duras madrugadas de solidão.
“[…] Pelo canto da boca num sussurro
Fiz um canto demente, absurdo
O lamento noturno dos viúvos
Como um gato gemendo no porão […]”
Via da janela do novo ninho [onde agora costuma repousar as suas velhas asas] uma tímida chuva cair aos bocadinhos, molhando a sua pequenina floresta tropical, oásis particular, quintal que [embora ainda não soubesse] abrigaria muitas das melhores memórias que experimentaria ainda sob esta plumagem [ave rara que era]. Meio sem querer, cantarolava repetidamente os versos daquela canção que tantas outras madrugadas solitárias já havia embalado.
“[…] Solidão!”
Mas a vida era lá fora e o caminho sempre em frente. Foi, portanto, naquela manhã gélida de [quase] inverno que quis ser chuva e poder desmanchar-se, pouco a pouco, como numa espécie de ritual de reinvenção. Quis incontestavelmente ser chuva porque TODA chuva é [re]começo!
CAssis, a Menina Digital
- Os trechos “entre aspas” apresentados neste micro-conto da Menina Digital pertencem à magistral canção “Na Primeira Manhã” do cantor e compositor pernambucano Alceu Valença, fonte de inspiração da menina CAssis no dia de hoje.
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