Portugal, vinte e três de dezembro do ano da graça de dois mil e treze. O frio não dava trégua por aquelas paragens e a Menina forjada no calor dos trópicos sofria de uma saudade lancinante que urrava ao pé do seu ouvido em dias assim. O calendário estrategicamente pendurando diante da sua mesa de trabalho apontava o passar acelerado dos dias. O final do ano já apontava logo ao virar da próxima esquina. Mais dois dias e seria manhã de Natal. E ela, que passara os últimos tempos contando com o calor da sua gente nesta época do ano… via-se obrigada ao descontentamento dos que ficam quando o desejo é o de partir rumo a tão almejada jornada transatlântica.
Da janela do seu novo pouso, apreciava mais aquele dia que surgia diante dos seus atentos olhos negros. Ela bem sabia que a vida estava lá fora e que em frente era o caminho [uma das mais preciosas lições que aprendera com a sua velha mãe]. Mas a verdade é que lhe faltavam forças e uma pitada de coragem, talvez, para dar seguimento ao que aprendera. Um aviso sonoro, insistente e aborrecido, pôs fim aqueles breves devaneios que passeavam nos pensamentos da menina vinda das Terras de Vera Cruz. O café estava pronto! E, sem perceber, suspirou vezes sem conta, enquanto vertia o líquido negro numa chávena qualquer. Eram suspiros de saudade. Saudade de casa, do ninho-primeiro, da acolhida sob as asas da passarinha-mãe.
Não tardou nada até que os seus pensamentos voassem até os confins onde nascera. Foi num piscar de olhos que uma das melhores recordações de sua infância veio marcar presença naquela manhã. Não foi preciso muito para que, enquanto segurava entre as mãos espalmadas a sua chávena quente, numa tentativa vã de aquecer-se ao menos um bocado, viajasse memórias à fora. E, catapultada pela saudade, voou até as lembranças de uma manhã qualquer de domingo, em que costumeiramente era acordada pelo seu pai, com o alerta de que era hora de saltar da cama.
– “Levanta, neguinha, que eu trouxe o pão-doce de côco que ‘ocê adora e ’tá quentinho”, dizia ele.
Renitente, espreguiçava o corpo magrelo de menina e pedia ao pai para ficar debaixo das cobertas um pouco mais, mesmo sabendo que o apelo de pouco ou nada adiantava, pois logo as ordens viriam da cozinha da enorme da casa que abrigara a sua infância. Ordens das quais a Menina sequer ousaria tentar fugir.
– “Mas a dona Ana Cláudia ainda está na cama? Levanta logo antes que o café esfrie, menina!”, gritava Dona Cici, a sua mãe, ordens aleatórias, enquanto coava o café, algo costumeiro naquele lugar.
De volta à realidade, a Menina tentava conter as lágrimas enquanto sorvia o café feito por ela, ritmada pela saudade que insistia em devastar-lhe o peito naqueles dias. Talvez fosse da época natalícia, talvez fosse por estar há tanto tempo longe de casa, talvez fosse a lembrança do cheiro dos “cafés de saco” feitos pela sua mãe, talvez nem soubesse ainda o porquê do choro… a única certeza que tinha era a vontade de escrever, de deixar um registro para a posteridade. Na dúvida, pegou papel e caneta. Escreveria, então, a mais bela carta para o mais belo ser vivente nesta terra: Dona Cici, a sua mãe!
“Minha mãe querida,
Primeiro que tudo, peço que me abençoe. Escrevo estas mal traçadas linhas na certeza de que lhe arrancarão mais lágrimas que sorrisos. Mas nada tema, minha mãe! É só uma questão de tempo para que leve em minha bagagem os melhores sorrisos. Prometo, mãe, que lhe secarei todas as lágrimas e que, no calor dos teus abraços, hei de embalar as nossas melhores gargalhadas. Tenho tanto para lhe contar, mãe…”
E assim foi naquela gelada manhã de dezembro, vésperas de mais um natal longe do ninho-primeiro: acordou, fez café, lembrou coisas doces e escreveu uma carta.
CAssis, a Menina Digital
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