Acordara aquela manhã com a excitação que costuma apoderar-se dos que não se contentam com pousos vazios. Caixas empilhadas, malas por terminar, livros, discos e pequenas recordações que transformavam aquele pequeno aposento num universo tão peculiar, um reino encantado onde, impávida e serena, reinava a menina vinda de Terra Brasilis.
Ouvia canções de amor enquanto embalava aos bocadinhos o seu mundo em caixas de papelão. Deu por si mesma a folhear muitos dos livros inacabados, endireitando-os, um a um, com se fossem peças distintas de um grande ‘quebra-cabeça’, um que apenas ela entendia e, portanto, lhe cabia solucionar. E num desses folhear de livros, eis que a menina apercebeu-se do sorriso matreiro que, repentinamente, desenhou-se em seu rosto. Se alguém a visse naquele exato instante, poderia jurar que os seus olhos, usualmente doces, intensamente brilhavam – incontestável deleite, dado o tesouro garimpado nas páginas do seu adorado exemplar de ‘O Amor nos Tempos de Cólera’.
“Preciso do teu corpo, pois já nem caibo mais em mim.”, dizia a pequena nota deixada pelo [outrora] amado amante e dono dos seus sorrisos. As memórias ressurgiam vívidas, quase palpáveis, uma após outra. Algumas lágrimas foram inevitáveis, é certo. Mas foram rapidamente sobrepostas por sorrisos. Cada vez mais largos e constantes. Era um prazer secreto [com um ‘quê’ de proibitivo] que se permitia vez em quando: a apreciar os seus guardados, repescando sonhos que aguçavam as suas mais doces memórias.
Não tardou nada para que se apercebesse de que muito da sua história poderia ser contada a partir daquelas que eram as suas relíquias. Lá estavam eles: Buarque, Kafka, García Márquez, Velha Guarda da Portela, entre tantos outros bambas, por vezes chorando amores desfeitos, noutras tantas festejando os voos por voar e os ninhos nos quais ainda embalaria os seus melhores devaneios.
“Preciso do teu corpo, pois já nem caibo mais em mim.” Releu mais uma vez os versos contidos naquele pequeno pedaço de papel pardo que, escrito numa caligrafia tão familiar aos seus olhos, imediatamente denunciava as mãos que costumavam passear pelo seu corpo. E desta feita, apenas sorriu, tamanho era o contentamento por lembrar já ter sido tão amada.
Guardou à sorte a pequena nota de amor num dos seus livros, para que um dia mais tarde possa reviver amores de outrora. Sentiu o peito pleno de alegria [regozijo!], tanta era a vida contida naquelas muitas caixas empilhadas diante de si. Mal sabia, a Menina: quantas mais fossem as caixas vazias ofertadas pela vida, mais vida seria necessária para preenchê-las todas – jornada aceita desde sempre e por ela executada com maestria… dia sim, outro também!
CAssis, a Menina Digital
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